Eu esfaqueio, tu esfaqueias, eles esfaqueiam

Quando se pretende, além de penalizar a pessoa que esfaqueou o médico na Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio, entender o contexto ao que ela foi submetida desde que nasceu – que tipo de vida teve, que influências recebeu, se pôde ir à escola, se teve família, se teve dignidade -, absolutamente não significa justificar seus atos, e sim buscar entender as origens da barbárie, justamente para buscar solucioná-la.

Parece simples de entender – não se está a defender o bandido (“leva pra casa”), como maliciosa ou ignorantemente se diz quando se pretende desfocar as ações do produto final (penalizando-o) e concentrar nas causas dele (tratando-as).

É compreensível que, quando algo violento assim acontece, a racionalidade fique de lado. Não é fácil acessar a necessidade de entender a fundo um fato social, pois isso acarreta reconhecermos nossas falhas enquanto sociedade e nos colocarmos em uma perspectiva ativa: como responsáveis e não apenas como vítimas. Nossa primeira reação, humana e instintiva, é vingança, é penalizar, é acorrentar, é dar o troco, é diminuir a maioridade penal, e tantas outras coisas.

A história do menino que esfaqueou o médico na Lagoa é autoexplicativa, não há necessidade de maiores reflexões para que se entenda o porque a trajetória dele o levou onde levou. “Mas isso não justifica o que ele fez”. Também acho que não justifica, o que não significa que estamos isentos de refletir e perceber a vigorosa relação entre o que ele se tornou e a vida de abandono, de total exclusão, de falta de oportunidade, dignidade, cuidado, afeto, educação, perspectiva, presentes nesse caso e em tantos outros similares.

Esse contexto não pode levar alguém a algum lugar muito diferente. Mas estamos tão acostumados com a situação de exclusão e marginalização, isso já é tão parte da nossa realidade, que acabamos perdendo a sensibilidade e deixando de relacionar os impactos da falta de dignidade na vida de um indivíduo.

Ele é culpado, ele deve cumprir pena, ele é provavelmente um caso perdido, ele é um criminoso, mas ele é também produto da sociedade que cada um de nós constrói diariamente, sejamos nós trabalhadores de bem pagadores de impostos, sejamos nós políticos fazedores de política pública.

E qual o caminho que queremos seguir? Simplesmente penalizar e nos revoltar com o produto final, distribuindo ainda mais violência, ou também olhar para a realidade por trás desse produto final, tentando entender com honestidade as forças e causas por trás dele, para então tentar efetivamente combatê-las, distribuindo mais justiça de fato, e não aquela que queremos ter ao nos posicionarmos como fatores externos e alheios ao que acontece diante dos nossos olhos.

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