Memórias póstumas de uma coxinha

Eu era uma coxinha.

Preconceituosa e medrosa, medo de gente, medo e preconceito de andar de ônibus, coisa de pobre.

Achava que pobre era pobre por opção. O mercado é farto e a oportunidade sempre reluziu na mesma proporção para todos, sem exceção. Pobre, pra mim, então, era tudo vagabundo mesmo.
Se o bolsa família tivesse sido implementado na minha época de coxinha pura, certamente também ia chamá-lo de bolsa-esmola.

Mesmo raciocínio para presidiário. Se tá lá, porque santo não é. Se santo não é, pena de morte para esses monstros. Naquela época, eu não entendia o que era desigualdade social, falta de oportunidade, injustiça social, apesar de ter estudado em escola boa em São Paulo. Esses nunca foram temas de ordem do dia para uma coxinha moradora de zona nobre em São Paulo.

Justiça social se resumia a ter dó e a fazer caridade – o máximo que eu achava que podia fazer por quem não teve a mesma sorte (ou mérito) que eu. Se as cotas raciais tivessem aparecido na minha época de coxinha-creme pura, acharia um absurdo aquele tipo de preconceito às avessas. Imagina, ajudar negros a entrarem na faculdade? Compreender as consequências do racismo sistêmico? Seria uma afronta aos meus princípios cristãos e morais.

Fazia parte de ser coxinha ser mei hipócrita. Era complexo ligar os pontos embora bastasse lembrar com quantos negros convivi durante o ensino médio, fundamental e faculdade, nos escritórios, nos condomínios, pra entender que havia mesmo preconceito racial por aqui.

Consumir era o meu nome. Carro, sobrenome. Trabalhar com o que gostava, uma besteira, coisa de romântico. Manifestação popular, coisa de bugios revoltosos. Esquerda, coisa de hippie, maconheiro, vagabundo.

Foram muitas, muitas coxinhices vencidas.

Esse tempo passou. Hoje me vejo mais como croquete de camarão, o que entendo ser um certo avanço em termos de progresso de pensamento, vaidosa que continuo a ser.

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