Para dançar preciso me afastar de mim

Desde as eleições de 2014 uma bolha de confortos se formou ao meu redor e me protegeu daquilo que embrulhou o estômago não só nas manifestações em núcleos afetivos mas também na minha compreensão sobre a extensão do preconceito, arrogância, moralismo que sempre deram sinais de existência, mas ali em 2014 vieram à superfície e se tornaram reais e palpáveis.

Como identificação é um fator importante para vivermos uma vida sadia, acho que não só eu mas muita gente se embolhou nos seus mundos particulares onde existia ratificação de ideias, ou discrepâncias mínimas. Não tive cacife para continuar frequentando e me expressando em mundos tão discrepantes. O estômago não permitia nem a bravura nunca foi tanta.

Às vezes a bolha é estourada quando um acontecimento grande submete ao choque com o mundo de fora.

A morte da Marielle essa semana fez a bolha particular estourar – fazia tempo que não tinha contato com a mesma toada e nível de manifestações que, devido à proteção bolhística, não repercutia tanto mais na minha vida. Por ausência de contato, a vida estava ficando cada vez melhor. Não era melhora, era bolha. O susto foi tamanho que parecia que era a primeira vez que tinha contato com o mundo real e bestial “de fora”, e instantes depois o córtex pré frontal indicava que era déjà vu.

Os debates em torno das eleições de 2014 propiciaram um processo importante de questionamento e evolução (para quem curte essa ideia de evolução e pans) – era importante parar e pensar. Mas não estávamos preparados, nunca havíamos discutido política e não estávamos acostumados ao embate, somos ultra sensíveis, autoritários. O que vivemos naquele momento teve que ter tido alguma repercussão interna. Um questionamento mísero, seja lá, sobre a forma como expressamos ideias, sobre as consequências da polarização e das discussões estéreis, ou sobre o projeto, a longo prazo, que almejamos pro nosso país, pras nossas vidas.

Com os acontecimentos dessa semana percebi que o processo iniciado em 2014 não pára, se mantém firme, apesar da minha tentativa de proteção. A bolha estourada e o contato com manifestações embrulhadoras de estômago mostram que esse processo não vai parar nunca.

Mas dessa vez rolou oportunidade de olhar as coisas com uma nova lente. A percepção de que não contribuo para um possível progresso se não me identifico como agente de mudança. E mudança requer movimento – pra mudar o externo, preciso mudar o interno e me afastar das crenças que paralisam, que dão as certezas que confortam ao ponto de eu não querer ir buscar mais nada, que me aprisionam e estacionam. 

A vida, oscilante e labiríntica, traz a necessidade de controle, de agarrar certezas e viver delas, reafirmando quem somos e qual o nosso papel. A não linearidade das coisas e as incertezas do mundo nos desafiam constantemente. Mas nossos instintos e/ou nossas influências sociais não nos ensinam a dançar nessa realidade.

Muito pelo contrário, nos apegamos a correntes, deuses e crenças favoritas, influencers, e nossas bolhas reafirmam o que queremos ser. Construímos um mundo ao redor que legitima isso o tempo todo, está tudo sob controle. Todo dia temos certeza do que somos e somos viciados em ter convicções.

Não cabe dança, mas estagnação e apropriação de ideias, não só na política, mas em outras circunstâncias ordinárias da vida, como a devoção à marcas de telefone celular ou do posicionamento quase sempre enfático e absoluto sobre movimentos sociais, feminismo, maconha, religião.

No caos (no mundo real) não há respostas certas e erradas, bem ou mal, moral e amoral, certezas e confortos. No caos há perspectivas e abertura a aprendizado, há processos e adversidades, embate interno e angústia, distanciamento, liberdade e possibilidade de transformação. Não há seguranças e o que somos/pretendemos ser não é garantido. É preciso saber transitar nesse mundo.

O processo desencadeado em 2014, que nunca vai parar de surtir efeitos, nesse novo estágio me ensina que dançar é preciso para que eu possa ser agente de transformação. Para dançar preciso me afastar de mim, do meu ego, das minhas rédeas, dos meus mecanismos de defesa que me fecham. Entender que é tudo processo e eu sou uma mera condutora – é também no meu erro de julgamento que vou gerar possibilidade de debate e crescimento. Deixar de lado culpa e necessidade de querer me firmar como correta e indefectível.

Me deixar expressar, repensar, influenciar, lutar e errar. Pra isso acontecer, é preciso dar espaço para as dúvidas e os incômodos fluirem; pra isso é preciso diminuir a minha significância, soltar as rédeas das verdades absolutas, estourar as bolhas mais constantemente e me deixar leve o suficiente pra poder dançar.

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