Cultura do furo

Talvez muitos sintam as respectivas carapuças se acomodarem, mas não penso em ninguém ou em qualquer grupo espefico pra escrever sobre este tema. Acredito mesmo ser um comportamento geral, impulsionado por toda uma cultura da qual eu também faço parte.

O assunto começou na Bélgica, quando conheci uma francesa que passou um ano em São Paulo, estudando arquitetura na FAU. Contou que, tirando o idioma (ela chegou ao Brasil sabendo falar “bom dia”), um dos primeiros impactos culturais foi a falta de palavra das pessoas ao seu redor.

Combinavam mil programas com ela e simplesmente furavam o tempo todo. E ela, que estava chegando num país diferente, definitivamente contava com aquilo.

Isso é algo incompreensível pra um europeu no geral. O raciocínio é simples – somos, via de regra, sujeitos emancipados detentores de direitos, obrigações e vontade própria, somos livres para decidir e assumir o que queremos e não queremos, ou o que podemos e o que não podemos.

Ela entendeu o que rolava: ninguém queria desapontá-la. E dizer “não” é difícil mesmo pra gente – não queremos desapontar, parecer rudes ou antipáticos.

Aí eu voltei e comecei a reviver tudo isso. Qualquer motivo vira uma desculpa pra furar. Qualquer. Entendi que o comportamento dos às vezes bem metódicos europeus, de combinar e cumprir, quer dizer respeito.

Não é pra levar à ferro e fogo. Há situações e situações, eu sei, eu sei. Não estou levando às ultimas consequências um papo de bar, um papo casual, o ‘vamos nos ver semana que vem, vamos marcar algo esses dias…’. Também concordo que morar em São Paulo, onde as pessoas ficam constantemente vítimas do imprevisto – que é uma constante da cidade -, é algo pra ser levado em consideração.

Tenho consciência do que se deve e do que não se deve ser levado à sério, afinal eu sou uma dessas pessoas que dificilmente falava “não” pras pessoas e que sempre se enrolava com três, quatro compromissos marcados ao mesmo tempo. Que se deparava com um repentino desânimo ou falta de vontade de cumprir com o que eu havia combinado.

Do que estou falando: de combinações com certeza, com hora marcada. Mas qualquer chuva ou dor de cabeça acaba virando uma desculpa.

É claro que, dentro deste mundo de furões, e nos quais eu me espelho pra ser uma pessoa melhor, existem os ponta firme, aquela espécie rara que realmente valoriza e respeita o tempo do outro. Sabem dizer um bom “não” quando necessário e declinar do convite quando não apetece tanto assim ou porque sabem que naquele dia vai ser difícil cumprir com o combinado. Num primeiro momento podem parecer antipáticos para nós que vinculamos negativas a coisas chatas, desagradáveis.

Estou aprendendo, tentando estabelecer as prioridades e dizer mais nãos sem me sentir mal por isso. Com exceção, é claro, do velho papo empolgado de bar, onde me permito, no calor do momento, combinar 14 coisas desconexas no próximo sábado que sei que não serão cumpridas de jeito nenhum. Bar com os amigos sem combinações esdrúxulas não é a mesma coisa.

Total
0
Shares
Related Posts