Somos todos pastéis

Mil novecentos e oitenta e nove.

Brincávamos de quebra-gelo com um cigarrinho de chocolate entre os lábios no meio da sala. De relance, acompanhávamos Jaspion batendo nozinimigo, embalados pelos Gipsy Kings no som de madeira de 3 metros de altura recém adquirido pela família.

Tem tanta coisa dessa época que marcou a vida – começar o dia comendo melão com presunto cortado pelo meu pai, ganhar massagem dele antes de dormir, fazer guerra de coco de cavalo com ele nas viagens pra Conchas e, aos finais de semana, tocar a campainha das casas alheias e sair correndo pelas ruas de trás da casa da minha avó.

(Sinto muito pelas crianças que nasceram depois dessa época e já não conseguem tocar a campainha dos empreendimentos imobiliários que tomaram conta do bairro, seja pela falta de campainha, seja pelos seguranças com cara de poucos amigos que podem alvejá-las com uma bala de fogo pela tentativa – precária – de importunação à paz pública.)

Dessa época, além dessas influências que moldaram meu caráter de menor infratora, me lembro de uma pessoa em especial. Era um querido e antigo amigo da família que sempre frequentava a nossa casa e que me marcou. Talvez porque eu gostava muito dele (me presenteou com um pogobol verde e roxo certa vez) ou talvez porque o sujeito era a antítese da minha família. Esse cara era o tio Pastel.

Achava curioso que tio Pastel achava tudo muito perigoso. Tomar chuva, andar a pé, ir ao centro da cidade, andar de noite, pisar na areia, descer escada, pegar ônibus.

Lembro que era muito precavido e nada ficava sem planejamento na vida dele. Desde a ordem dos itens na geladeira até as viagens hermeticamente planejadas, sempre com um guia dos lugares turísticos onde não se pode deixar de ir ou que todo mundo vai, a tiracolo.

Tio Pastel reclamava muito do trânsito na cidade, que naquela época já apontava índices complicados devido ao crescimento frenético de automóveis. Cada integrante da sua família tinha um. Com o advento do rodízio na cidade, comprou o carro “do rodízio”.

Um passeio a pé sem destino e sem propósito, uma viagem sozinho para um lugar que não estava nos Top 10 Destinos da revista semanal que assinava, ouvir a intuição e tocar a campainha das casas de desconhecidos eram coisas inimagináveis e sem o menor sentido para tio Pastel.

Munido de resposta pronta para quaisquer situações da vida, tio Pastel era um disseminador das unanimidades. Os papos dele com meu pai, apesar de sempre afetuosos, eram embaraçosos. Tio Pastel achava meu pai muito louco. Onde já se viu fazer guerra de coco com as crianças e não colocá-las na escola de inglês desde os cinco anos de idade.

Tio Pastel se reproduziu. Confeccionou uma linda e medrosa Coxinha. Nunca fomos melhores amigos de Coxinha (ela jamais nos emprestava seus baldinhos de areia na praia). Hoje em dia, Coxinha segue publicando nas redes sociais que as ciclovias e os corredores de ônibus na cidade são um verdadeiro absurdo e que São Paulo não é Amsterdã.

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